02 – A caridade das sobras

Como é amar ao próximo, segundo o Mestre Nazareno.

Já é tempo de sacudirmos o pó das sandálias e caminharmos com os que buscam a realidade, dentro dos fundamentos reencarnacionistas, em seus devidos termos.

Se o próprio Mestre foi repudiado quando procurou esclarecer os homens, não seremos nós que passaremos imunes. Se as nossas observações aqui do espaço são irreverentes ao acomodado, como certo, e têm sua estrutura na real vivência do homem, considerando não ser possível desmembrar a evolução, não temos motivo para estancar o nosso verbo.

Se pelas trilhas do Evangelho procuramos elucidar o homem no que se refere à “caridade” de Deus, à compreensão da fragilidade da sua criatura e ao seu eterno e legítimo perdão, pensamos não estar fugindo ao que ninguém, em sã consciência, poderá refutar.

Se distendemos a concepção de caridade a ângulos de obrigatoriedade fraterna, dizendo que não pode continuar a se constituir em “economia” espiritual, mas no exercício para o despertar da consciência, e que não devemos ir ao encontro do nosso semelhante, mas trazê-lo até nós, em circunstâncias de vivência humana e digna – substituindo a caridade dos “farrapos” e das “sobras” – pretendendo que isto seja amor ao próximo, quer nos parecer que não ultrapassamos os limites dos ditames do Nazareno.

Se repudiamos, venha de quem vier, o dizer que o Criador tem as suas criaturas como “marionetes”, por Ele criadas para deleitar-se com os seus sofrimentos, permitindo-lhes cometer o erro por ignorância, para posteriormente atirá-las às masmorras umbralinas, como se não bastasse o agressivo constante de que se constitui o ambiente planetário, que leva o homem ao exercício consolidante do saber e da evolução, estamos procurando dar ao homem o retrato do Pai como Ele é, e não como Ele tem sido mantido, por interesses escusos, sob a nebulosa mística, e por vermos, ainda hoje, criaturas de boa-fé que, embora imbuídas dos melhores propósitos, deixam-se levar num enredamento sem precedentes.

Avancemos, portanto, e como para cada época o seu pensamento, podemos entrar no que em verdade se torna necessário.

Se procuramos dar ao “Novo Testamento” o senso preciso e conciso de que se constitui, sem fantasias ou suposições, arrancando-o dos limites dos templos e da inocuidade poética, não trepidamos em nossos propósitos. O Evangelho não é propriedade de religião ou religiões, mas a carta magna do futuro próximo, queiram ou não os que pretendem ver nele o indicador infalível que os conduzirá (aí entra o personalismo) ao porto seguro. É também a raiz, o corpo e fruto da superação pelo homem, da sua própria ignorância e, como tal, não deve e não pode ser distorcido em seus fundamentos legítimos.

Quando o Evangelho for exposto na sua realidade, não se admirem se vier a causar represália daqueles que se acostumaram a transferir as responsabilidades que lhes estão afetas, substituindo-as pelo simples “culto no lar”, ou pela aquisição de limitados conhecimentos, ou ainda, pela caridade intencional, que até o momento não passa de um “negócio” com Deus. Se diziam antes que “quem dá aos pobres empresta a Deus”, agora dizem que “é dando que recebemos”, temos aí apenas a mudança dos termos, mas não do objetivo, e é justamente este pensamento mercenário, o mais desaconselhado no “Espírito do Evangelho”.

Jesus não veio trazer a paz, mas a espada, e a nossa já está desembainhada, justamente neste campo de luta – Evangelho – onde o nosso ânimo não se arrefecerá. Se, nos devidos termos, o gigante do Evangelho, Saulo de Tarso, combateu o “bom combate”, tê-lo-emos por guia à sombra do Mestre. Não nos curvaremos às frontes laureadas pelo saber humano; não pactuaremos em conveniências e não buscaremos, no sofisma ou no engodo, o nosso escudo; não nos demove a vaidade, acobertada pela santidade aparente, nem esperamos louvores ou recompensas, mas nos impulsiona o dever, somente o dever, para cujo cumprimento nada, absolutamente nada, nos será imposto.

Não nos ab-rogamos em donos da verdade, mas também não aceitamos o que, como tal, comprovadamente, não se situe dentro do justo e racional. Dizer que nem tudo pode ser dito a todos, perfecciona-se como confissão de comodismo, pois, se é necessário que o homem esteja preparado para conhecer a verdade, por que não prepará-lo?

Aí está a responsabilidade dos condutores, dos evangelizadores, em preencher esta lacuna pela cultura e pela dignificação, ao invés de condicionar mentes através de supostas verdades eivadas de prometimentos.

Estaremos nos desviando da retidão evangélica? “Ai de vós, intérpretes da Lei!”

Se dissermos que os Centros Espíritas, salvo raras exceções, visam mais a parte utilitária ou centros de triagem de espíritos desencarnados, não estamos faltando com a verdade. Se os chamados trabalhos espíritas ou sessões estão se tornando um vício, onde são tratados os “irmãozinhos desencarnados”, para que não caiam no umbral, não concordamos, porque na Terra, atrás das grades, milhares de “irmãozinhos encarnados” gemem sob o peso do erro, que a incultura, em 90% os levou a cometer. Outros tantos “irmãozinhos”, muito embora profitentes de alguma religião, também sofrem pela negligência dos evangelizadores, que não conseguiram transformá-los em homens dignos e capazes, pelo labor honesto e útil ao seu semelhante. Se a nossa palavra faz uma inversão na direcional aplicada, ou seja, tratar do homem enquanto homem, não nos sentimos marginalizados dos ensinamentos do Mestre da Galiléia.

O que nos parece infantilidade é querer remediar o que se poderia prevenir, pois, se o espírito quando desencarnado é considerado como “irmãozinho”, por que também não o é quando na carne?

O que se faz necessário ao encarnado é a unificação em bases de responsabilidade, visando sempre dar-lhe possibilidades de auto-condução dentro da sociedade, quer no senso utilitário ou no moralizador. Importa também que, se o Mestre nos propôs “a busca da verdade”, não foi porque somente o conhecimento dela nos bastasse, mas a sua aplicação junto ao nosso semelhante, o que confirmou com o “amai-vos uns aos outros”. Assim como a “fé sem obras é morta”, o amor sem expressão é inerte, inválido, inexistente.

Ao pregarmos o amor dentro dos princípios da fraternidade, estamos destronando o “amor-caridade” e colocando em seu lugar, o único, o legítimo sentido que o mesmo guarda, qual seja, o de nos tornarmos irmãos e, entre irmãos não se faz “caridade”, obriga-nos a sentir apenas a necessidade presente.

Inútil pretender desviar o curso dos postulados evangélicos, porque a sua consumação e alicerçamento no orbe se fará, apesar dos homens lutarem e desejarem a continuidade da sombra, que favorece uns em detrimento de muitos.

O Evangelho é um compêndio de sociabilidade expressiva, progressista, avantajada em ciência e consciência, a que se implantará dentro do fator-tempo.

Em nada cooperam o conceito e atitudes daqueles que hoje se intitulam “espíritas”, porque nada de novo se acrescentou em termos de cultura científica, operativa ou utilitária, o que, se houvesse acontecido em realidade, muito teria produzido em favor da melhoria do seu irmão. Isto tudo, aliado a um alto nível de moralização, teria adentrado realmente o senso evolucionário (transformações sucessivas), portanto, evangélico.

Se tivemos a coragem de dizer que a evangelização espírita nos moldes atuais, ou seja, em paridade à catequese católica ou protestante, apenas se situa no rol de “mais uma”, foi porque o intercâmbio entre o corpóreo e o incorpóreo não teve como objetivo dar continuidade ao que já existia, mas para que entendessem o imperativo do momento, que é de completa transformação, carecendo, portanto, de uma inversão de concepções, que só será possível trazendo o desempenho evangélico para o âmbito terreno, onde a carência moral, a disparidade de cultura e dos meios de sobrevivência geram o ódio, a incompreensão e as lutas constantes, as quais constituem, exatamente a problemática afeta aos “trabalhadores da seara”, a ser superada. Seria de bom alvitre aos que “tomam da charrua” que não olhassem mesmo para trás, isto é, não se preocupassem muito conosco, os sem corpo, e procurassem cuidar daqueles que estão mais próximos, ou seja, dos próprios encarnados.

Do que admiramos, e muito, é que se fala amiúde de trabalho, fraternidade, confraternização, e circunscrevem-se à caridade incentivados pelos chamados “mentores espirituais”, que não medem a linguagem ou imagem distorcidas do objetivo real, ou do alicerce em que se fundamenta o próprio Evangelho, que é fazer pela felicidade de fazer, e fazer o necessário, o imediato (vide a parábola do bom samaritano). Dentro desta linha, estamos ainda em contradição flagrante ao noticioso comumente advindo do espaço, porquanto o mesmo é contrário aos princípios do próprio Mestre, a quem tanto veneram, sem contudo, entende-lo e segui-lo, pois o Evangelho é um enfeixado de exemplos e lições de desprendimento: “Aquele que perder sua vida por amor a mim (doutrina) ganhá-la-á”; “Daí de graça o que de graça recebestes”, e desde que nos anime qualquer forma de pagamento, mesmo dentro dos dizeres de que é “dando que recebemos”, não estamos seguindo em direção a este Mestre.

Não podemos fazer prevalecer o mesmo senso de interesse do dia-a-dia nos misteres espirituais, como vem acontecendo. Não podemos pensar que só quando desencarnados prevalecerá esse desprendimento, essa alegria de “plantar flores, ao invés de cereais”.

Infeliz daquele que só faz por obrigação ou por interesse, pois desconhece a alegria e a emoção que vive aquele que só por amor e espontaneidade o faz. Infeliz, também, porque ignora o que seja viver, em espírito e verdade, o céu íntimo no momento da ação, pois embora o corpo silencie, sorri a alma.

 

 

Irmão Anthero

(recebido por via mediúnica)