54 – Esflorando

Quando falamos sobre parábolas, narrativas e fatos vividos no Evangelho, se nos apresentam duas linhas de conduta: a primeira é a sua permanência na superfície, querendo-os paisagísticos e conduzindo-os para preencher o espaço “físico-literário”, além de nos insinuar a sutileza dos elogios à pessoa do Mestre. Como este proceder não fere melindres, ou foge à exegese da ética, satisfaz o emotivo místico, evitando contestação.

A segunda é o penetrar no âmago da paisagem que a fere do ilusório oferece, e viver-lhe o realismo inconteste que enfoca o sócio-legislativo-científico e moral, na plenitude da área.

A opção pela segunda, em que a realidade flui, não raro é repudiada pelos que ainda são ciosos da manutenção do tradicional.

Tomada para exemplo e versando pela segunda opção, uma das mais, senão a mais difícil situação vivida pelo Mestre, como a da “mulher adúltera”, encontra no seu lítero-descritivo uma afirmativa que, se delineada à luz da razão, pode gerar controvérsias, tentando apanhar Jesus em contradição aos codificadores por Moisés.

Antes de entrarmos no raciocínio que nos conduzirá ao que reputamos lógico, cumpre esclarecer a posição moral do Mestre em dois itens básicos: “Eu vim cumprir a lei e não derrogá-la” e “Seja o teu dizer: SIM, NÃO”.

Basta darmos atenção a isto e teremos consciência da real posição do Mestre no episódio. Neste, como em inúmeros outros, é evidente de caracterizar o sentido capcioso das perguntas dirigidas a Jesus.

Não sabemos se objetiva valorizar a sua inteligência, o que é desnecessário, ou traçar o perfil do mártir permanente, visando explorar a sensibilidade afetiva. No caso em foco, nossa discordância recai sobre este item, cujo motivo passamos a expor.

Considerando a atitude nobre dos que apresentaram a mulher, em ter silenciado retirando-se em seguida, de maneira respeitosa, e que esta só pode vir de pessoas que portem princípios formativos, e sejam suficientemente cultas para entender o valor moral e social da resposta do Mestre, podemos concluir, ao revés do comum interpretado, que não se tratava da turba capciosa e ensandecida.

Tendo ensinado que “não se deve atirar pérolas aos porcos, ficaria vago o sentido e a própria razão deste ensinamento, pelo fato de, na ocasião, ter o Mestre atirando um pérola sem jaça, do mais alto valor, num tempo, a “perfeição”, que deverá atingir a humanidade sob todos os ângulos: moral, social, judicial e fraternalista, se aquelas pessoas não se ajustassem ao perfil moral delas, aqui delineado.

O Mestre não atirava pérola aos porcos, e as atirou, foi a quem sabia digno de recolhê-las.

Como vemos nesta parte do episódio, evidencia-se a correspondência de caráter exigido para merecer do Mestre a atenção que lhes foi dispensada.

Por que buscaram Jesus?

Não se condena um homem pelo que diz, mas sim pelo efeito de suas palavras: em todos os tempo, em todas as circunstâncias.

Embora a Vulgata Evangélica faça referência a um só romano, o Centurião de Cafarnaum, inúmeros o buscam sob incontáveis pretextos, quer de ordem moral ou física, dentre os quais, mensageiros do próprio Pilatos.

Por que Jesus?

Pelo simples fato de que Jesus era, na ocasião, o mais conhecido e respeitado líder moralista, o mais versado na lei tradicional Mosaica, o maior Rabí e Mestre, em Israel.

Por que Jesus?

Pelo que dizia. Não no sentido breve da palavra, mas sim porque a pujana de verdades irreversíveis que a sua filosofia sócio-humanitária expendia, com lastro no realismo quotidiano, vinha oscilando as bases do tradicional Mosaico nas mentes cultas, livres e moralizadas de seu tempo.

Por que Jesus?

Porque os homens que o procuravam era a nata dessa grei, cuja consciência sentia-se constrangida em anuir ao codificado anacrônico, seco e árido de senso humanitário e fraternalista.

Para uns o Mestre era sábio, para outros o perigo.

Por que Jesus?

Nada mais coerente para dirimir dúvidas, do que a fonte de onde elas provém.

Considerando que não estavam num tribunal (Sinédrio), mas sim no campo, embora houvesse alguns membros investidores de autoridade e versados na lei para decidir da condenação ou absolvição, qualquer decisão dos presentes seria nula.

Disto deve-se entender o “não te condenaram” como: Não houve réplica? Não “opinaram” pela tua condenação?

A prova concluente do que dizemos é a que perplexos pelo inusitado da sábia resposta, abandonaram a mulher a qual, de pronto, se colocou sob a tutela do Mestre aguardando deste, melhor destino.

Fica, portanto, aqui caracterizada a simples consulta de opinião. Por que não conduziram a mulher ao Sinédrio? Sem argumento. Cada um tem papel específico na sociedade.

Retornamos ao esflorar. Se o Mestre declarou que como cidadão cumpriria a lei, seria óbvio que naquela ocasião, nem pela palavra entrasse em contradição. E foi esse e somente esse o motivo que o levou, pela agudez da inteligência, numa frase, não ser obrigado a exemplificar o SIM e NÃO.

Levando a questão judicial a termo consciencial, apelando à compreensão dos que o interpelavam, não ultrapassou um mínimo os limites de sua esfera de ação, de líder moralista: nem SIM, nem NÃO. Inteligência não lhe faltava.

Quando a sós com a mulher:

– Onde estão os teus “acusadores”

– Se foram, Senhor.

– E não te “condenaram”?

– Não, Senhor.

– Eu também não te condeno (atentemos para a palavra também).

Também tem sentido adicional, há aqui o de igualitário nivelador. É o Rabí, o Sábio, o Líder e o Mestre, adjudicando (dando por sentença) das prerrogativas, somando-se fraternalmente aos demais. O maior sendo o menor, em exemplo vivo de que, em termos de evolução, nem o TER e nem o SER, vasa ao fórum de  superioridade. É “amai-vos uns aos outros”, na prática.

O Mestre, que traduzia a verdade da palavra ao ato, dizendo “não te condeno”, revelou dois princípios da mais alta relevância, como veremos.

Tendo ensinado que deveríamos perdoar, o que pelo óbvio deve-se entender no mínimo setenta vezes sete e, como não estabeleceu tempo, fica na dependência da capacidade de compreensão de cada um, da fragilidade do seu semelhante.

Ao examinarmos o Evangelho, não encontramos um só ato exemplificado pelo Mestre: “Eu, o Mestre, te perdoo”. Isto difere-se substancialmente de: “Perdoados são teus pecados”, e na cruz: “Pai, perdoai-lhes”.

Por que “não te condeno”?

Antes, pensemos: O que é um fato? Fato é o conceito que fazemos das coisas e expressamos pela palavra, que pode ferir a um concreto ou abstrato.

O que é um ato? Ato é proceder não missível, mas sensível em seus efeitos como fato.

Como o fato é o conceito que fazemos das coisas, podemos entender seja esse, concreto ou abstrato, desde que nos sensibilize.

“Não te condeno”, não exprime conceito como fato gerado por um ato, o que se entende por desconhecer o fato.

Assim, não há sensibilidade gerada por um fato. S e a mulher não era esposa do Mestre e, por isso, Ele não fora afetado pelo fato, torna-se evidente que nada tinha a perdoar, o que entende-se, que só pode perdoar quem de alguma forma se sente afetado pelo fato, quer no moral, no físico ou material.

Só pode não condenar, portanto, quem não se sente de alguma forma atingido pelo fato. Sentir aqui é sentir mesmo, não admitindo sinônimo, porque se compreende a avaliação e valorização da sensibilidade vivida e que, só após, poderá sobrevir o perdão.

Não há perdão que encontre raiz nesta verdade. Não pode perdoar, portanto, quem não sentiu o efeito do ato (no fato abstrato, sensibilidade).

Se o afetado na sensibilidade pelo fato, usa a frase: “não te condeno”, dá a esta uma conotação exterior e outra interior. Na aparência desconhece o fato, mas no íntimo não pode negar ter sentido os seus efeitos.

“Não te condeno” transforma-se em subjetivo, no perdão. Quem assim procede, foge à lealdade para consigo mesmo.

Condenar sem que sejamos sensibilizados, entra a maledicência, que pretende gratuitamente a deterioração moral do seu semelhante, equivalendo a um julgamento: “Não julgueis”.

A maledicência, sempre na ausência, é a exteriorização do ódio permanente inconsciente, motivado (nada faz o homem sem motivo exterior ou interior) pela sensação (complexo de inferioridade), em relação a tudo e todos indistintamente. É o extravasar da frustração mental, moral e sensitiva. É viver na vida de outrem, sem que tenha vida “em si mesmo”. Jesus tinha “vida” em abundância.

A inversão de valores pela transferência da questão judicial para a consciencial, encontrou nos “acusadores” perfeita compreensão desta verdade, razão pela qual se afastaram silenciosos e cabisbaixos.

O pior cego é o que vê, entende, mas falta-lhe coragem para viver o que viu e entendeu.

Mesmo que Jesus fosse afetado em sensibilidade pelo fato, não poderia perdoar, porque um superior não pode perdoar ao inferior sem que retroceda na evolução.

Por superior, entendamos os que já se completaram como racionais e que, embora encarnados numa sociedade inferior, com ela não comunga no íntimo: “meu reino não é deste mundo”.

Perdoar por si já indica ter conhecimento do fato e ter sido sensibilizado de alguma forma por ele.

Perdoar implica em reconhecer em si superioridade motivadora do perdão, estabelecendo assim, ausência de nível fraternalista no íntimo, e negação do “amai-vos uns aos outros”, na prática.

Quem ama não sente a ofensa, não macula o amor com sensibilidade ferida ou melindres.

Sabemos, é óbvio, de difícil percepção o etimológico moral, mas assim é o irreversível na amplitude evolutiva (dá-lhe a outra face).

Conhecendo o estado evolutivo do homem, Jesus ensinou o perdão, que é apenas um exercício auto-disciplinar, como outros tantos por ele transmitidos: paciência, tolerância, justiça, etc. O perdão praticado na Terra diz mais da auto-educação para a boa convivência social. O perdão e outros exercícios só podem ser exercitados entre iguais, entre os que compõem a mesma sociedade.

Ficando só com a mulher, Jesus não se faz arauto da estultícia, que só a obtusidade pode conceber e aceitar, entretanto ao coercitivo dos “penalógicos” expiatórios ressarcitivos e probatórios.

Demorando a olhar compassivo e amoroso sobre a mulher, diz: Vai, retoma o caminho rumo à evolução, cujo palmilhar consente erros e acertos próprios da experiência, “único processo” que norteia o homem das mais simples realizações até a mais elevada, desideratum máximo de existir, que é a evolução.

Por esses mesmos erros e acertos não temas a Lei de Deus, que antes de ser Lei, é compreensão e amor por aquilo que por vontade própria criou.

“Não peques mais”, e teria refletido: E se pecares, cuida de não seres apanhada nas malhas da lei dos homens porque, aquilo como o teu Criador conhece como motivo natural e que a ciência do futuro saberá ser um desequilíbrio hormonal, ou um desajuste emocional, que os legisladores de hoje, e mais ainda, cuidarão seja pecado ou crime, “não te aconteça o pior”.

Tanto a atitude do Mestre para com a mulher, como na citação “dá-lhe outra face”, temos o indicativo do proceder do superior para com o inferior.

O superior não condena, não perdoa e não revida, sob qualquer aspecto, o ato do inferior, mas apenas desconhece. Isto acontece porque o superior compreende e tolera a infantilidade do inferior e, portanto, conhece a limitação mental com reflexos na razão e na consciência do seu semelhante menos evoluído.

Se ao superior cabe proceder assim, o mesmo sendo um evoluendo apenas mais avançado na escala, como devemos entender a atitude do Superior Absoluto Criador, e não criado?

Postula certa grei evolucionista como indiscutíveis os expiatórios ressarcitivos e probatórios, querendo-os educativos.

Poderíamos estruturar um tratado sobre tal questão, mas sintetizemos:

Todo conceito de justiça repressiva faz paralelo com a social humana. Cárcere não é escola.

Para esta grei, “as leia são eternas e imutáveis”. Por imutáveis entendemos as que, independentes de estado, lugar, tempo, espaço, inoscilam como “constante”.

Perguntamos: Se após delinquir, o delinquente permanece encarnado mais anos, e o delito não aciona os penalógicos em seus efeitos, como entender a “posteriori”, no espaço ou em reencarnações futuras? Se é lei e imutável?

Toda lei raciona dede o momento que é ativada pela ação. Isto é um fato.

 

Irmão Anthero (recebido por via mediúnica)